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9 de junho de 1959

 

“Eu estava ensinando contas para os filhos quando bateram na janela. O João disse:

- Mamãe, atende o homem de óculos Fui ver.

Era o pai de Vera. (...)

- Você me escreveu que a menina estava doente, eu vim visitá-la. Obrigado pelas cartas.

Te agradeço porque você me protege, não revela meu nome no teu diário.

Ele deu dinheiro aos filhos e eles foram comprar balas. Nós ficamos sozinhos. Quando os meninos voltaram a Vera disse que queria ser pianista. Ele sorriu:

- Então você quer ser granfina

Ele sorriu porque os filhos dele são músicos.

A vera pediu um rádio. Ele disse que dá um no Natal. Quando ele saiu eu fiquei nervosa. (...)

Ele deu 100 cruzeiros. O José Carlos achou pouco, porque ele estava com notas de 1000.”

Assim como muitas outras mulheres de Esperança, a diarista faz questão de lembrar em todas as conversas possíveis que jamais duvidou da misericórdia de Deus. Todas as terças está presente nas pregações dentro da ocupação, com mediação da Irmã Cássia, geralmente acompanhada do filho do meio, Alisson, de 14 anos. Alisson não é de falar muito, mas conta como foi acompanhar pela TV a violência da reintegração de Esperança 2. “Eu fiquei preocupado porque não sabia para onde minha mãe ia”. Para o futuro, só tem um plano. “Espero que a gente vá morar numa casinha própria para não passar pela humilhação de ficar em uma invasão”, torce. 

 

Ao contrário de Alisson, Maicke, de 20 anos, filho mais velho, estava junto à mãe no dia da reintegração de Esperança 2. Ele tinha desistido da escola um ano antes, após cursar pela terceira vez a 7ª série. Tentativa número um: primeiro semestre de notas boas, principalmente em matemática. No segundo semestre, se mudou de Abreu e Lima para o Recife. Vinte quilômetros de distância. Sem dinheiro para passagens, reprovou por falta. Tentativa número dois: com grupos de amigos na Favela da Rata, próximo ao Viaduto da Avenida Norte, foi alocado para uma escola pública dentro de uma comunidade rival. Era ameaçado. Faltou a todas as aulas. Para a terceira tentativa já não restava paciência ou “boas companhias”, como costuma contar Neide.

 

Neide perdeu Maicke logo após ele fazer 18 anos. Não para um assassinato, mesma maneira como 63 jovens negros são mortos por dia no Brasil, mas para o tráfico. Pedras de crack. Sessenta delas. No laudo policial, a especificação: junto a outros dois homens com “atitudes suspeitas” ele foi abordado pela polícia. Além do crack, R$ 380 caracterizavam tráfico. Infração do artigo 33 da Lei de Drogas. Recolhido ao Centro de Triagem de Abreu e Lima, mesmo município no qual não conseguia chegar e terminar o segundo semestre de escola alguns anos antes. Quando conversamos pela primeira vez, ele tinha acabado de sair do Cotel. Passara um ano preso, parte dessa estadia foi irregular, revogada por excesso de prazo. Trabalhava na borracharia do avô e não queria falar sobre o período no qual se afastou de Esperança. Neide, por sua vez, torcia para o filho mais velho se distrair com ocupações positivas e não errar de novo. “Peço tanto a Deus para interceder por ele. Essa semana ele me contou que teve muita vontade de sair com uma faca por aí, mas desistiu”, desabafou. 

 

Não demorou muito para Maicke ser preso de novo. Assalto a ônibus. Segundo boletim de ocorrência, ele entrou pela janela de um dos 53 mil veículos da movimentada Avenida Norte, a poucos metros de Esperança. Com uma faca peixeira teria levado o celular de uma menina acompanhado de um menor de idade. Negou o ocorrido. Foi para o Cotel. Desta vez passou por audiência de custódia. “Desceu” ao Complexo Prisional do Curado, dividindo espaço com outros sete mil presos. Acredita que a liberdade vai chegar. Ele está preso. De quem é a culpa? 

 

Torcendo por dias com faxinas para fazer, Neide continua vivendo na iminência de voltar à rua junto aos quatro filhos que restam. Quer o auxílio, mas em um dia é avisada de que receberá, no outro é alertada da possibilidade de reintegração de posse. Mais uma vez. Não se abala, porém, com todo o sofrimento (classificado por ela apenas como provações) pelo qual passa todos os dias. Do momento no qual acorda até a hora de dormir. Às provações ela se curva e agradece, mesmo não sendo dia de pregação em Esperança. “Eu vou até onde Deus permitir. Por tudo que eu to passando só agradeço a Ele, por toda a minha luta. Por toda a minha dificuldade. Agradeço todo o dia”. 

O caminho traçado por Neide da segunda Esperança para a primeira era curto: bastava atravessar a Avenida Norte, importante via que corta a zona Norte do Recife, ligando o Centro ao bairro da Macaxeira, na zona Oeste da cidade, onde 53 mil veículos, posses de tantos recifenses, trafegam diariamente. Por trás da importante via, em uma casa de propriedade da Prefeitura do Recife, abandonada há anos, morava o sobrinho, que logo dividiu o espaço no meio. “Estava muito endividada quando cheguei, então morei por 6 meses sem pagar nada. Minha irmã ficou parada (sem emprego) e disse ‘olhe, você não paga aluguel, mas me dê 150 reais por mês para eu completar o meu’, e até hoje tô aqui, pedindo pela misericórdia de Deus”, explica. 

Ela também perdeu o filho

Muitas lágrimas, câmeras, confusão. Alguns gritavam, outros desmaiavam. A repórter perguntou para Neide o que ela ia fazer agora, com cinco filhos para criar. Sem casa para morar. Ela tinha sido a última a sair da ocupação Esperança 2, no bairro da Encruzilhada, esvaziada truculentamente em 29 de março de 2014. Uma reintegração de posse a expulsou do barraco onde morava há 11 meses. A ordem não fazia muito sentido, pois o conceito da palavra “posse” não era tão familiar para a diarista de 44 anos desde 2013, quando perdeu a casa ao se separar do marido. Ao homem com o qual Neide teve cinco filhos e viveu por quase duas décadas, a lei deixou a residência da família, fruto de uma herança. A ela, sem casa e com a responsabilidade de cuidar de Maicke, Alisson, Alan, Jonas e Luiz, restaram “bens materiais”: uma geladeira, máquina de lavar, fogão, cama, mesa e outras miudezas vendidas de uma por uma. Não havia mais casa para os seis, quem dirá espaço para tantos bens? 
 
O fator determinante para a Justiça decidir ser normal sustentar os cinco filhos e pagar aluguel foi o benefício recebido do INSS por causa de uma doença. Ela tem problema de “nervos”, como chama. Em apenas um mês foi internada cinco vezes. “Ficava tomando medicação porque as crises que eu tinha eram muito violentas”, explica durante a mais profunda revelação dada nos nossos seis meses de conversas. Os nervos de Neide, um dos motivos da separação do marido - pelo menos na concepção dela - são assuntos delicados demais para serem tratados ali, no meio de uma roda com todos os moradores de Esperança 1. O mesmo nome e desejo, mas uma ocupação diferente, no bairro do lado, para onde foi após arrancarem dela pela segunda vez aquilo que chamava de casa: um barraquinho com o fogão, cama e geladeira deixados com toda a “consideração” da Justiça.


 

Neide perdeu a casa duas vezes

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