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11 de agosto de 1958

 

“Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transformam preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata?”

Maria foi dormir cedo naquele dia, mas não chegou a atingir sono profundo. Era pouco mais de sete da noite quando foi acordada dentro do barraco onde mora, no oitão do casarão abandonado pela Prefeitura do Recife. Não entendeu bem quem eram os desconhecidos, agora dando tapas no rosto dela e agredindo o companheiro. Logo juntou as peças: era a polícia. Já ouvira falar da truculência dos homens fardados, mas nunca tinha a sentido daquela forma. Eles só foram embora após a meia noite. Ela apanhou o suficiente para apenas doer. “Não deixou marca, só fiquei com o rosto vermelho depois”, lembra. “Você sabia que eles não podem entrar dessa forma?”, pergunta alguém do grupo enquanto conversamos. “Tinha muita gente estranha entrando aqui já”, justifica. Sutilmente, outros membros da ocupação concordam. Muda de assunto. Em Esperança, ninguém fala explicitamente sobre drogas, mesmo que alguns (poucos) moradores recebam apelidos referentes ao consumo de maconha e crack. A polícia estava atrás de traficantes ou usuários. Saiu sem levar ninguém. Mesmo exposta a esses tipos de abusos, estando em ambiente insalubre e vivendo relações conturbadas com alguns vizinhos, ela não deseja sair dali. “Só quando tiver com a chave do meu apartamento”. 
 
Os curiosos olhos verdes, estatura pequena e a mente sempre pronta para fazer uma piada não deixam transparecer os 30 anos de experiências carregadas nas costas. Maria é a única mulher de Esperança que não trouxe consigo as crias para ocupação, ao contrário dos homens, que deixaram tantos para trás. É evidente a forma como ela é discriminada, principalmente pelas outras colegas mulheres, por causa disso. Com duas filhas, uma adolescente e outra em idade escolar, ela decidiu sair da casa onde morava com parentes, na Ilha do Joaneiro, bairro de Campo Grande, zona Norte do Recife, para buscar a independência em Esperança. Tinha 26 anos e foi uma das primeiras a chegar ali, onde divide barraco com o companheiro e um primo dele. Os dois vivem de “ôias”, limpando e fazendo pequenos consertos em veículos na frente de casa. É muita gente para o serviço quase escasso. No começo eram cinco homens, hoje tem dia que são mais de 17. A lotação também é um reflexo da moradia. Ninguém contabiliza, mas tem gente que chegou em 2015, 2016… Só dois ou três saíram dali para outro lugar. “Antes as coisas eram mais calmas. Agora tá mais sinistro”, explica quando questionada sobre mudanças. 
 
Nas redes sociais, um dos nossos principais meios de comunicação, expõe constantemente as saudades de Ana e Cristina, sob cuidado de parentes na ilha. É nas redes sociais também que passa boa parte do dia. Compartilha de tudo um pouco: fotos dos fins de semana com amigos; mensagens de valorização ao corpo feminino “Estrias são escamas que toda sereia tem”; imagens de fé “Deus, me desculpe se eu pedi mais do que agradeci”; desabafos sobre problemas “Tudo vai melhorar”. Ao contrário de muitas moradoras do casarão, que dos pés à cabeça estão mergulhadas na fé, Maria oscila. Esse pode ser um dos motivos pelos quais não é tão próxima das outras mulheres: ela tem a sua fé, mas também vangloria a diversão, fuma, bebe nos fins de semana, aproveita os 30 anos.
 
Três anos após Maria chegar em Esperança, a Ilha do Joaneiro foi parcialmente atingida por um incêndio. Muitos conhecidos perderam as casas (“Pelo menos ficou a vida”). Por sorte, o local onde as filhas dela estavam era de alvenaria. Não foi atingido. “Uma vez, quando vazou gasolina da moto de Eliseu, ia acontecendo um incêndio”, lembra. Logo muda de assunto de novo. É impressionante a frequência com a qual ela muda de assunto se ele é desconfortável. Prefere sempre falar de coisas positivas. “O auxílio moradia deve sair em maio”, comenta. Parece um bom ponto de conversa, mas logo pergunto para onde ela vai se a prefeitura pagar os R$ 200 mensais e, consequentemente, esvaziar o casarão abandonado. Termina o assunto com rispidez. “Não sei”. Ninguém sabe. 

Todos os assuntos trazidos neste perfil foram abordados em conversas esporádicas que tive com esta personagem nas minhas visitas à Esperança. O episódio referente à violência policial foi discutido em uma roda com outros membros do Núcleo de Assessoria Jurídica da UFPE (Najup), grupo de extensão da Universidade Federal de Pernambuco. Neste caso, estávamos recolhendo relatos para a produção de um documentário sobre a ocupação. Ela só permitiu a gravação da voz dela, nunca do rosto. O aprofundamento de alguns assuntos tratados a seguir foram feitos em conversas pelo Facebook, local utilizado pela personagem para dar updates sobre a vida dos moradores. Para preservar a identidade da personagem, o nome dela foi trocado, assim como das filhas.

Maria apanhou da polícia

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