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Rap da Invasão
 
Cássia Alves
 
“Eu moro nesta invasão,

ai meu Deus, o que fazer? 
A sociedade não nos vê.

Somos invisíveis!

Por quê?

Tanta discriminação, pra quê?

Tanto racismo! Por quê? 
Olha, meu irmão eu quero

te dizer que sou igual a você.
 O que muda é dinheiro, fama,

mas aos olhos de Deus

está jogado na lama. 
Se você fala é porque não sabe

o sofrer de um povo que

luta para sobreviver. 
Você fala porque tem casa,

tem carro, um emprego legal. 
Só pensa em você,
no seu bem estar

enquanto o povo lá fora está a chorar. 
Também quero te falar
dos guerreiros desse lugar, que lutam porque querem uma casa pra morar e com dignidade os seus filhos criar”.

10 de julho de 1958

 

“Cai a tarde lentamente. Já estão chegando os crentes, com seus instrumentos musicaes para louvar a Deus. Aqui na favela tem um barracão na rua B onde os crentes vem rezar treis vezes por semana. Uma parte do barracão é coberto com folha de flandres e a outra de telha. Tem dia que eles estão rezando e os vagabundos da favela jogam pedras no barracão e quebram as telhas. Mesmo sendo insultados eles não desanimam. Aconselha os favelados para não roubar, não beber e amar ao próximo como a si mesmo”.

A tranquilidade, porém, não era para todos. Em bairro onde o metro quadrado custa em média R$ 5 mil, ver gente preta, e ainda por cima pobre, morando de graça, não agrada todo mundo. Pelo menos um dos vizinhos constantemente aterrorizados pelos assaltos e consumo de drogas quando o casarão era abandonado se incomodou. “O homem aí da frente chamava a gente de macaco”, lembra. Sem residência comprovada oficialmente, não podia nem ser atendida no postinho de saúde da área. Precisou bater o pé e conversar mais de uma vez para que os moradores fossem aceitos ali e recebessem um dos direitos mais básicos entre os tantos que são negados todos os dias: a saúde. Nos primeiros meses em Esperança a família de Cássia era composta por Camila, filha mais velha, Daniel, o mais novo, e o esposo. A filha mais nova, Daiane, nasceu enquanto eles já moravam ali. Era fraquinha e teve um sério problema de asma após o nascimento, logo teve o nome “Sara” adicionado no registro. Hoje, a menina é a mais literal extensão de Cássia: está sempre no braço ou nas pernas dela, pedindo -às vezes gritando - por atenção. Quando por algum motivo a mãe não pode segurá-la, a pequena precisa contentar-se com os braços da irmã mais velha. Por simples costume ou porque é das mulheres o dever de cuidar de uma criança, não sabemos, mas quem cuida de Sara Daiane ali é sempre Cássia ou Camila.

O esposo de Cássia sempre foi reservado. Durante algumas das minhas visitas estava fazendo bicos, em outras estava dentro do quarto. Sobre ele, assim sobre como a vida era antes de Esperança, nunca conversamos muito. Mais precisamente: só uma vez, quando ela agradeceu a Deus por há muito tempo ele ter se livrado de vícios como o álcool. Deus, para a Irmã, é mais do que aquele em quem confiar para ganhar uma casa própria no futuro: é quem conversa com ela, atendendo aos mais diversos pedidos e sendo o companheiro nas horas de desespero. Quando a ligação com ele não é manifestada na língua que poucos entendem, vem através de hinos. Até hoje foram mais de 50. Ele manda as letras na hora e sem caneta ou papel ela as canta e memoriza, como um instrumento repetindo comandos. “No começo, quando tivemos problemas com o postinho e com o homem que nos chamou de macaco eu perguntei ‘será que a gente não serve de nada, Deus?’ e no mesmo dia ele me deu um rap”, lembra. O rap de Cássia logo chamou a atenção dos membros do Núcleo de Assessoria Jurídica (Najup) da UFPE, grupo de extensão que acompanha Esperança desde que ela começou. Foi convidada participar de um evento na tradicional Faculdade de Direito do Recife, casa de formação para tantos dos juízes que decidem diariamente o destino de habitações e ocupantes no Recife. Semana da Mulher Latino Americana e Caribenha. Ela ia cantar. Pediu a Deus uma nova música. Recebeu-a e cantou por toda a gratidão que tem ao núcleo, desde os pequenos favores feitos pelos estudantes até os grandes encontros para comemorar datas como Páscoa e Dia da Mulher. A gratidão pelo Najup é tanta que prometeu, mesmo que em tom de brincadeira, chamar a nova filha que carrega no ventre de Rayanne Bianca, em homenagem a duas das estudantes da universidade. Para Cássia, as desavenças entre alguns moradores (comuns em todos os grupos, afinal, “nem Jesus agradou a todos”), não impedem que ela os defenda como unos, afinal, já existe gente demais do lado de fora que não sabe da luta deles.

Cássia fala a língua dos anjos

Cássia fala a língua dos anjos. Não como quem aprende um novo idioma para viajar para o exterior: fala pelas próprias divindades, abrindo um canal com Deus. Geralmente durante as pregações das terças-feiras, dentro da ocupação Esperança 1. O pequeno espaço ao lado do quartinho onde mora com o marido e os três filhos desde 2013, no primeiro andar do casarão abandonado pela Prefeitura do Recife, se transformou em ponto de louvor em 2015. Irmãos de congregações vizinhas e os próprios moradores da ocupação se juntam para ler a bíblia, louvar e sentir tudo o que a fé pode proporcionar. Aí que começam os cantos, a euforia e a língua dos anjos, tão hostilizada e ironizada pelos descrentes. A Irmã foi uma das primeiras a chegar no local. Lembra da sujeira e do estigma ruim que aquele espaço abandonado trazia para a Rua Doutor Joaquim Arruda Falcão, no Espinheiro, um bairro nobre da zona Norte do Recife, próximo a prédios altos, casas grandes, avenidas movimentadas. “Era ocupado por gente que fazia maldade e usava drogas. Quando a gente chegou acho que o pessoal ficou até mais tranquilo”, comenta. 

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