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Os ônibus vão e voltam, assim como os trens, que de forma precária operam na linha Centro do Metrô do Recife. Desordenadamente, passageiros andam na fila. Faça sol ou faça chuva. É mais um dia na integração do Barro, localizada em bairro homônimo, zona Oeste do Recife. O ano é 2017. O salário mínimo custa R$ 937. Quase 14% da população não têm emprego. Neste cenário, Carolina nasceu. Ela está ali, do outro lado da rua. Seu esqueleto é feito de bambu, a pele é cheia de retalhos: lonas pretas, azuis, amarelas. Algumas tatuadas com nomes, outras com símbolos. Cada uma representando uma família. Pessoas que por motivos diversos não têm onde morar. As únicas responsáveis pela pulsação daquele organismo vivo. Ali, todos carregam um pouco da mineira de sobrenome Jesus, seja na falta de dinheiro para sobreviver, por ter passado fome um dia, ou apenas pelo nome do lugar onde vivem, um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), instalado no perímetro urbano do Recife em 17 de fevereiro de 2017.

Carolina de Jesus representa a segunda atuação do MTST no Recife. A primeira, em abril de 2016, foi batizada de Zumbi dos Palmares, também nas margens da BR-101, no bairro de Apipucos, zona Norte do Recife. Zumbi passou dois dias desafiando a cidade até ser brutalmente destruído pela força do batalhão de choque da Polícia Militar de Pernambuco. Alegavam que o terreno era de propriedade privada. Em Carolina, a situação não foi diferente. Um dia depois da ocupação, a PM tentou tirar os trabalhadores do local. Alguns apanharam, outros foram presos, mas ela continuou ali. “A resistência à repressão fez com que o movimento ficasse. Ter conseguido fincar uma bandeira naquela região já é uma enorme vitória, independente dos próximos passos”, afirma Guilherme Boulos, representante do MTST no Brasil.

 

Hoje, a ocupação é corpulenta: estende-se por um terço de quarteirão, às margens de um canal. Tem cozinha coletiva, barracões para assembléias, horta onde se plantam tomates, ervas, até mesmo milho. Lá, adultos, crianças, idosos, cachorros, os mais diversos tipos de perfis de seres vivos caminham, brincam, tomam decisões diárias e resistem. São mais de mil famílias. Eram 500 só no primeiro dia, quando o terreno foi limpo e as primeiras barracas montadas. O terreno, capaz de proporcionar alimento e teto para mais de mil famílias, foi desapropriado pelo Governo de Pernambuco para a Copa do Mundo de 2014, e desde então nunca teve serventia. O grande questionamento que pode surgir na cabeça de quem entra ali é como o lugar cresceu tão rápido. Por que há tantos moradores em uma ocupação? “Há uma demanda crescente de trabalhadores e trabalhadoras sem teto aqui em Pernambuco. Não é que eles queiram ocupar, é que eles não têm alternativa há não ser ocupar”, explica Boulos.

 

Para garantir a qualidade da convivência ali dentro, algumas regras precisam ser seguidas: não é permitido consumir qualquer tipo de droga, seja lícita ou ilícita; não é permitida a prática de nenhum culto religioso, nem nenhum tipo de discriminação ou violência. “Em dois meses de ocupação já tivemos um homem convidado a se retirar por um caso de violência contra a mulher. Este deve ser um ambiente seguro”, explica Rudrigo Rafael, um dos coordenadores do movimento em Pernambuco. Ali também não é possível comercializar nada. Do lado de fora, porém, muitos trabalhadores complementam a renda vendendo lanches 24 horas por dia. “Antes tinham relatos de estupro, assalto, tudo de ruim aqui dentro. Hoje as pessoas da vizinhança até agradecem porque é mais movimentado”, afirma Cristina de Lima, coordenadora do bloco G1, um dos três setores nos quais a ocupação está dividida, para melhor organização.

 

Cristina encaixa-se no padrão explicado por Boulos. Trabalhou na bilheteria da integração do Barro por muitos anos. Era responsável pelo controle de entrada e saída de passageiros. Perdeu o emprego. Não conseguiu pagar aluguel. Agora, faz parte de Carolina e afirma ter mudado de opinião quanto a ocupações. “Minhas primeiras lembranças de ocupação foi quando eu era pequena e meus pais foram morar no Planeta dos Macacos (comunidade no bairro de Jardim São Paulo, também na zona Oeste da cidade). Eu achava tudo muito desorganizado. Não achava que era certo até quando vim ocupar esse terreno. Agora entendo melhor”, conta.

 

Com quatro meses de existência, Carolina continua a crescer. Agora, os representantes do movimento seguem em negociações com o governo do Estado para que aquele espaço seja voltado para a moradia. “O crescimento do MTST aqui no Recife, em todo Pernambuco, nos permite pensar em planejar para daqui há dois ou três anos termos um movimento com capacidade de mobilização ainda mais expressiva, ajudando não só a colocar o problema da moradia num novo patamar, mas também a ter um processo de rearticulação social e da esquerda pernambucana”, afirma Boulos.

Carolina

21 de maio de 1958

 

“Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada (...). Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei! Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. (...) Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade do povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é a fome, a dor e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambadores.

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