top of page

Passos curtos e cansados são característicos do dia a dia de Carolina. Eles poderiam ser justificados por alguma doença ou idade avançada, se ela não tivesse apenas 40 anos. Anda devagar porque tem fraqueza no corpo todo. Sente fome. Todos os dias, com exceção de domingos e feriados, caminha quilômetros atrás de ferro, papel e qualquer objeto que possa dar dinheiro. Quando a situação complica, procura comida no lixo para os três filhos não dormirem de barriga vazia. Em condições insalubres, o barraco da mulher é estatística: ela vive em um dos 79% dos domicílios brasileiros sem água encanada e na metade sem esgoto sanitário. A década é 1960. A residência é na Favela do Canindé, em São Paulo. Mais de 50 anos depois, os dados sobre encanamento e esgoto podem ser melhores no resto do Brasil (64% do País têm esgoto e 85% água encanada, de acordo com o IBGE), mas no Recife ainda são retrógrados. Na capital esses números mudam, respectivamente, para 41% e 88%. Aqui, assim como em todo o Brasil, questão da moradia ainda é problema sério. Principalmente para as Carolinas. Além de levar nas costas o rótulo de “invasoras”, comum a todos os gêneros, elas precisam lidar com uma série de amarras potencializadas quando não se é homem: o desemprego, as drogas, a religião, e principalmente a - aqui - incontestável e intransferível responsabilidade da maternidade.


Carolina de Jesus morreu fisicamente em 1977, mas hoje vive em forma de acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), dando nome ao conjunto de mais de mil barracos no bairro do Barro, zona Oeste do Recife. Em um diário, relatos das mazelas e violências sofridas pela mulher negra, pobre e sem moradia digna no Brasil de décadas atrás ganharam o mundo. A denúncia impactou, mas não pareceu surtir efeito. A história não mudou. Muitos dos que lerão esta produção são como eu: de classe média, professores ou alunos universitários, jornalistas... Se estamos no Recife, passamos todos os dias na frente de ocupações sem fazer ideia da realidade ali dentro, principalmente para mulheres. Não adianta visitar, ser colega de quem ocupa, estar lá todos os fins de semana. É impossível carregar algo além de impressões quando você tem um teto seguro para dormir todas as noites. É por isso que nos perfis a seguir estão externados os relatos, as reações, as impressões meticulosas sobre cinco moradoras da mesma ocupação na Zona Norte do Recife: Esperança. Além delas, há também as impressões sobre a Carolina do MTST, ocupando o Recife de uma forma alternativa ao lado de um dos mais importantes terminais integrados da cidade.


“Os visinhos de alvenaria já tentaram com abaixo assinado retirar os favelados. Mas não conseguiram. Os visinhos das casas de tijolos diz: ‘Os políticos protegem os favelados’. Quem nos protege é o povo e os vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas épocas eleitoraes”, conta Carolina, ainda no começo do diário, em 1958. Nem os políticos, nem o povo, nem os vicentinos conseguiram aplacar o número de 120 mil casas em déficit habitacional só na RMR. Nunca é tarde para lembrar, mesmo que de forma piegas: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito. 

O porquê

bottom of page